Terça-feira, 9 de Fevereiro de 2010

antónio e ana.

 

I
 
Tudo poderia ter começado num dia cheio de sol, e em que logo pela manhã eu acordasse com uma música na cabeça e já a cantarolar; num daqueles dias em que desde que metemos os pés sobre o tapete macio sabemos que vai ser um óptimo dia, mas não. Tudo começou num dia em que a música não soava na minha cabeça, logo pela manhã, e assim que pus os pés no tapete azul-marinho como o mar, soube que o dia não ia ser grande coisa. Assim que acabei de pensar nisto, um trovão, ao longe, soou. Naquele momento lembrei-me como eu poderia ser como um relâmpago: rabugento; apareço, desapareço, aproximo-me e causo estragos. A seguir a isso, mais dois trovões soaram e eu caminhei pela madeira fria e pensativa, que tal como eu estava cansada. Cheguei até à casa de banho, liguei a água, despi-me e entrei no duche. A água quente, quase a arder, acordou-me e deixou-me terrivelmente mal disposta pois enquanto tirava o shampô do meu cabelo ela arrefeceu. Saí do banho, sequei o cabelo de cabeça para baixo, vesti-me, penteei-me. Peguei no meu casaco, na mochila e esperei que o carro apitasse. Enquanto esperava pela buzina desesperada do carro, lembrei-me como as rotinas eram chatas e que quando queríamos sair delas, não conseguíamos. As rotinas agarram-nos pela alma, como tentáculos de polvo e (quase) nunca nos libertam. Lembrei-me como a minha vida andava monótona, mas ao mesmo tempo, de vez em quando, apareciam sombras de um rosa. E eu passava cada dia, à espera que aquele rosa saísse da sombra e iluminasse a minha vida. De repente, a buzina desesperada soou, eu acordei para a realidade, mais uma vez olhei-me ao espelho das portas da sala e verifiquei o meu estado. Estava bem, penteada, intocada pelo vento. Lembrei-me que me tinha esquecido de pôr creme, e corri até a casa de banho. Peguei no creme e espalhei-o muito mal pela cara. Corri até a porta, a buzina soou novamente, e eu fechei-a, deixando a luz do quarto acesa. Enquanto descia aquelas escadas ia espalhando o creme. Abri a porta do prédio e corri, apressadamente até ao carro. "Bom-dia" disse eu, com uma voz sorridente. E mais uma vez pensei nas rotinas. Desde que este carro me levava à escola que eu dizia o mesmo "Bom-dia" sorridente, como se em mim tudo estivesse bem, e às vezes apetecia-me entrar carrancuda, ou então a chorar. Mas não, as rotinas falam sempre mais alto. Por isso, do outro lado, as pessoas presas à sua rotina, responderam com o seu jeito um "Bom-dia". Metade do dia, apenas uma pouca metade já tinha começado.
Percorremos a tão conhecida estrada, e pelo meio do caminho o sol incomodativo roçou nos meus olhos, e eu pisquei-os. Esse momento que antes me dava tanto prazer, agora só me apetecia virar a cabeça e seguir de novo o caminho para casa, e pelo caminho comprar uma revista e embrulhar-me na manta bege, a devorar a revista. Mas não, um dia mais tarde eu poderei fazer isso, mas agora tenho é que estudar. Começou de novo a chover. Tenho de sentar-me todos os dias na mesma cadeira gasta, ver as mesmas caras que tanto me alegram como me deixam maldisposta e ouvir as mesmas vozes. Mas nesse dia foi diferente. Cheguei à sala 33, sentei-me, e quando olhei à  volta vi uma cara nova. Interroguei-me sobre quem seria àquele. Ele olhou para mim. Sorriu e disse "Bom dia". Nesse momento senti-me perto do mar, segura, calma, e quente. E por isso desejei que os pais dele fossem sonhadores e tivessem dado o nome de Mar àquele seu filho. Sou o António. E aí descobri que os pais dele, nunca se tinham encontrado no mesmo estado que eu. Nunca tinham sentido como era estarmos ao pé de alguém, e sentirmo-nos perto do mar. Ana, disse eu - Seca e timidamente. Ele sorriu, e sentou-se numa mesa perto da saída. E eu lembrei-me como o mar era uma saída à rotina. Nessa aula, não prestei atenção ao movimento das placas tectónicas, mas sim ao movimento do meu coração, e da maneira como o Mar, o atraia. Olhei para ele durante imenso tempo, até ele levantar os olhos e olhar para mim. E aí perdi-me, perdi-me no meu Mar. Esperei que ele não tivesse amigos por ali, e se juntasse a mim no intervalo. E ele juntou. Foi comigo até à biblioteca. Sentámo-nos numa mesa, só os dois, e eu disse: Mar. O quê? - perguntou ele num tom de sussurro. O mar. Fazes-me lembrar o mar. Ele sorriu, arrastou a cadeira, foi até a uma instante e pegou num livro. Trouxe-o até mim e leu as primeiras palavras bem perto do meu ouvido. Eram palavras bonitas. E assim passámos a meia hora de intervalo na biblioteca, a lermos, a discutirmos, a rir-mos. Tocou e ambos caminhámos em silêncio até à sala de português. Entrámos e para espanto de todos sentámo-nos na mesma mesa.
 
II
 
Na aula de português, eu e o António sentámo-nos, e a Joana reclamou que se queria sentar comigo. Apenas olhei para ela, e lhe disse que se sentava noutra disciplina. Ela lá deve ter compreendido, ou então ter ficado extremamente zangada e dirigiu-se para o pé da Margarida. Abri o caderno comprado recentemente, com capa rosa, e escrevi o primeiro sumário daquele ano. O António acompanhou-me. E eu olhei pelo canto do olho para a sua caligrafia e fiquei maravilhada, nunca tinha visto um rapaz com uma letra tão bonita. Ele olhou para mim e sorriu-me, e mais uma vez estremeci. A mesma professora de há 3 anos falava sobre os planos para este novo ano; mas nem eu, nem o António ouvíamos. Eu comecei a escrever pequenos excertos de letras de músicas pelo manual, como sempre faço. Um hábito que sinceramente espero nunca perder. E ele olhou, ficou muito sério, depois riu-se e começou a cantar uma música, baixinho, só para mim. Eu ri-me. Alto. E a professora chamou-me à atenção. Tens um riso que parece que vem de dentro das conchas – disse o meu Mar. Sorri, escrevi o meu número num papel e entreguei-lho. Mais tarde ligo-te, riso de concha. A aula passou depressa, os olhares dos meus amigos começavam a irritar-me. E eu começava a ficar cada vez mais enervada; eles sabiam a minha história, souberam o que se passou no ano passado com o Luís e só me estavam cada vez a relembrar do sucedido, estavam de novo a lembrar-me das lágrimas derramadas, da dor que até então se tinha estancado no meu peito, do medo que por vezes me invadia; mas eu não queria entrar de novo nesse pesadelo, por isso fechei os olhos, as mãos e suspirei fundo. Nesse momento o toque soou, e a voz do António percorreu o meu corpo:
- Ana, queres vir comigo até minha casa almoçar?
- Não sei, António. Podes ser uma espécie de psicopata e queres-me matar ao almoço.
- Que tontinha, não é nada disso. Eu vou estar lá sozinho, os meus pais estão a trabalhar e como deves imaginar não faço a mínima ideia como se faz arroz.
- Olha que sorte que tu tens em convidar-me. Eu nem sei como se liga o fogão.
- Então eu ensino-te.
 

(vês inês? depois disto não consegui escrever mais nada)

publicado por anna. às 19:32
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De inês. a 9 de Fevereiro de 2010 às 20:19
Podes até nem ter conseguido escrever mais nada, mas o que escreveste até agora está perfeito. Completamente, meu amor. <3
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De
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